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Trinta anos depois, interligação da ferrovia Norte-Sul é concluida

Um encontro histórico está previsto para acontecer nesta quinta-feira, 25, entre as pequenas cidades de Palmeiras de Goiás e Goianira, no interior de Goiás, região central do Brasil. Será quando, após mais de três décadas, trilhos que vêm da ferrovia iniciada no Maranhão em 1986 se conectarão aos que sobem de São Paulo e o país ganhará sua primeira ferrovia que transita pelo interior com capacidade de conectar portos do Norte aos do Sul: a Ferrovia Norte-Sul. Pensada no Império, desenvolvida a partir de 1986 e remodelada em 2006 para um novo traçado, a Norte-Sul terá os 2,2 mil quilômetros entre as cidades de Açailândia (MA) e Estrela d’Oeste (SP) finalmente conectados, com a conclusão desse último trecho. Agora, ela terá a capacidade de ligar o Porto de Itaqui (MA) ao de Santos (SP) por via ferroviária.

Depois da conclusão, a ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) deve fazer uma visita ao trecho para o processo de homologação e, depois disso, a previsão é de que seja marcada uma cerimônia com autoridades para a inauguração oficial.

O trecho que fica pronto é de responsabilidade da Rumo, que em 2019 ganhou a subconcessão de 1.537 quilômetros da estrada de ferro, entre Porto Nacional (TO) e Estrela d’Oeste. O trecho de 720 quilômetros de Porto Nacional a Açailândia foi subconcedido em 2008 à VLI, empresa controlada pela mineradora Vale. Com a ligação, finalmente, o país terá uma capacidade que não é a que está no nome da ferrovia (ligar o Norte e o Sul), mas outra ainda mais relevante e que pode acelerar uma mudança no desenvolvimento nacional: dar uma solução logística eficiente para o transporte de mercadorias a uma vasta região no centro do Brasil, cuja ausência a vinha condenado a uma baixa produtividade por séculos.

Após três décadas, encontro histórico marcará conclusão da ferrovia que ligará Porto do Itaqui ao Porto de Santos

A ferrovia passa por três regiões do país (Norte, Centro-Oeste e Sudeste) e conectará áreas de três estados (Minas Gerais, Goiás e Tocantins) que não têm nem saída para o mar nem para outros países. Com essas características, vastas áreas não tinham formas viáveis de escoar produtos eficientemente, já que as distâncias até os portos mais próximos passam de 1,5 mil, 2 mil quilômetros. Isso torna o frete rodoviário (única opção) impraticável, inviabilizando vários tipos de negócios. A expectativa, que dá sinais de que está se concretizando mesmo antes da conclusão total das obras, é que além da tradicional produção agrícola de elevada produtividade visando ao mercado externo (soja, milho e algodão são os produtos mais comuns), uma vasta gama de empreendimentos pode tornar-se economicamente viável pela possibilidade de usar o trem como transporte, seja para os portos, seja para a região de maior renda e produção do país, o Sudeste.

O engenheiro Bento Lima, que trabalhou na Valec (estatal que recebeu a concessão da Norte-Sul ainda no século passado), conta que conheceu o idealizador da ferrovia, o também engenheiro Paulo Vivacqua, que trabalhava na então Companhia Vale do Rio Doce. A Norte-Sul foi idealizada como uma compensação pela construção da EFC (Estrada de Ferro Carajás), projeto da Vale da década de 1970 ligando o Pará ao Maranhão para escoamento de minério de sua mina mais produtiva. Bento diz que Vivacqua era “um homem de visão” e que já antecipava que toda essa região ao centro do país, até então improdutiva, seria em algum momento utilizada, o que passou a acontecer a partir dos anos 1970, com a ocupação de áreas por agricultores e o desenvolvimento de tecnologias que permitiram uma agricultura de alta produtividade em áreas próximas ao paralelo 16, que passa entre Mato Grosso, Goiás, Minas Gerais e sul da Bahia.

“No mapa do Brasil, você tinha o litoral povoado e depois quase nada. Quebrou-se essa coisa de que o cerrado não prestava para nada. Mas não foi caminhando do litoral para o oeste, mas do sul para o oeste. E ficou um hiato entre o litoral e o oeste”, explica Bento, apostando que a ferrovia vai preencher esse hiato. Guilherme Penin, diretor da Rumo, aponta que estudos indicam o centro do eixo da produção agrícola do país na década de 1970 localizado entre os estados do Paraná e do Rio Grande do Sul. Após a incorporação do oeste, o eixo atualmente está na região entre o Mato Grosso e Goiás, justamente a área que não tinha ferrovias com qualidade adequada para o transporte de mercadorias.

O diretor da empresa aposta que a Norte-Sul deve repetir o que já acontece em outra região do interior atendida pela estrada de ferro a partir da década passada com maior qualidade, o sul do Mato Grosso. Penin conta que cada avanço da ferrovia ou ganho de produtividade que gere redução de custos de frete pode viabilizar novas áreas para produção agrícola de alta produtividade e, posteriormente, outros negócios industriais, tanto em Goiás como no Tocantins.

“São vastas áreas com produção de subsistência ou de pecuária de baixa intensidade ou agricultura improdutiva que vão ser incorporadas mais rapidamente à produção moderna. Porque as condições físicas para tal, relevo, clima e outras, estão ali. O que não estava era a solução logística, o que tornava proibitivo o investimento naquele hectare”, explicou Penin. O estado do Tocantins é citado como exemplo de como a chegada da ferrovia é transformadora. Bento conta que o estado foi o que mais cresceu proporcionalmente na produção de grãos nos últimos 10 anos, 153%. Nenhum outro estado chegou a 100%, informa o engenheiro, que não tem dúvidas de que a ferrovia, aliada à criação do estado na Constituição de 1988, foi a responsável por esse desenvolvimento.

Bento lembra que, na época da construção da Norte-Sul, um hectare no estado não passava de R$ 1 mil. O ex-secretário de agricultura do estado, Thiago Dourado, atualmente consultor de empresas, diz que hoje um hectare no Tocantins pode valer entre R$ 5 mil e R$ 50 mil. Essa variação depende de quão próximo ele está de uma infraestrutura de transporte.

História – Chegar ao momento de ligação dos trechos dessa ferrovia pode-se definir como uma saga, nem sempre com atos heróicos. Ao lançar a ferrovia em 1985, o então presidente da República, José Sarney, foi muito criticado, já que não havia carga na região que justificasse o investimento bilionário. A estratégia de vendê-la como uma integração entre o norte e o sul do Brasil não ajudou a melhorar a percepção ruim de então. Para Bento Lima, a forma escolhida para divulgar a ferrovia escondeu a estratégia real, que era ser uma ferrovia de desenvolvimento para o Centro-Oeste. Esse modelo de ferrovia tenta antecipar o desenvolvimento de uma região, levando uma solução logística mais barata como forma de fomentar o crescimento em áreas de baixo desenvolvimento.

“Chamar de Norte-Sul foi mais para fazer marketing”, disse Bento, que não concorda com as críticas de que ela demorou a ser feita. “Ferrovia de desenvolvimento você vai construindo na medida em que o local vai se desenvolvendo. Para o norte, acredito que o tempo foi o adequado.” As críticas à ferrovia se ampliaram diante das denúncias de que a construção havia sido contratada numa licitação de cartas marcadas em 1986. As sucessivas crises fiscais que perduraram praticamente até o ano de 2005 fizeram com que a Norte-Sul andasse pouco, não alcançando mais de 200 quilômetros, entre Açailândia e Estreito (MA).

O economista Bernardo Figueiredo, que trabalhou no Geipot, órgão de planejamento do governo até a década de 1990, e posteriormente ajudou o primeiro governo do presidente Lula a elaborar um plano ferroviário, contou que ao chegar ao governo encontrou um projeto que na prática não era uma ferrovia ligando o Norte ao Sul. Isso porque havia uma ligação que ia da cidade de Açailândia (MA) até Colinas do Tocantins (TO) e outra de Porangatu (GO) até Anápolis (GO). Ou seja, a Norte-Sul eram duas ferrovias que não se conectavam. Isso era tecnicamente justificável porque a EFC (Estrada de Ferro dos Carajás), onde a Norte-Sul se liga ao norte para chegar ao porto de Itaqui (MA), tem a chamada bitola larga (largura entre os trilhos).

Já o ponto que seria a ligação ao sul da ferrovia, em Anápolis, com a FCA (Ferrovia Centro-Atlântica), ferrovia que vai de Goiás a São Paulo (por um caminho mais alongado que a Norte-Sul), tem a bitola estreita. Pelas diferenças de bitola, a técnica indicava que não seria adequada uma ligação única. Mas o presidente Lula, que foi um dos críticos ferrenhos do presidente Sarney quando a ferrovia foi lançada, decidiu fazer a ligação completa e mudou o projeto. A partir dali, segundo Bernardo, é que a ferrovia passou a ser de fato uma ligação entre o norte e o sul do país, já que seria toda construída em bitola larga e parando não mais em Anápolis, mas em Estrela D’Oeste (SP), onde se ligaria à Malha Paulista, a ferrovia que chega ao porto de Santos (SP).

Em 2008, a Lei do SNV (Sistema Viário Nacional) foi aprovada com a modificação do traçado da Norte-Sul e, com isso, nasce oficialmente a ferrovia que será entregue nos próximos dias. Há outros trechos da ferrovia em estudos, de acordo com a Valec, desde 2022 rebatizada de Infra S.A, que levam até o Rio Grande do Sul, ainda não desenvolvidos (estudos neste link). [https://portal.valec.gov.br/ferrovias/ferrovia-norte-sul/estudos-de-viabilidade-evtea]

“Foi só aí [2008] que ela virou Norte-Sul”, contou Bernardo.

Mas, de novo, a implementação não saiu sem novas denúncias de corrupção em sua construção, o que levou a diversas operações da Polícia Federal ao longo da década passada contra ex-dirigentes da então Valec, a estatal que tem a concessão da ferrovia e passou a cuidar da construção desde o início. Como forma de iniciar o processo de operação da parte da ferrovia que estava pronta, em 2008 o governo também decidiu licitar um primeiro trecho, entre Porto Nacional (TO) e Açailândia (MA), fazendo a chamada subconcessão. Lá, segundo Bernardo, já estava um problema operacional que, para ele, ainda não teve solução e pode prejudicar o desenvolvimento futuro da ferrovia, o direito de passagem.

Nas contas dos estudos da concessão de 2008, a chamada FNS (que é o trecho de Porto Nacional a Açailândia) valeria 50% menos se não fosse garantido o direito de passagem para que os trens que operam nela pudessem cruzar pela EFC, a ferrovia da Vale, e chegar ao porto de Itaqui (MA), segundo Bernardo. O governo obteve da Vale a garantia do direito de passagem e pôde conceder a ferrovia pelo dobro do valor. Mas somente a própria Vale apareceu na disputa. Entre 2001 e 2022, o Brasil, investiu R$ 20 bilhões em construção de ferrovias com recursos do Orçamento da União, de acordo com dados atualizados da Infra S.A, o que inclui obras na Norte-Sul (cerca de 3/4) e na Fiol, uma ferrovia na Bahia. Desse valor, R$ 16 bilhões ficaram concentrados em apenas cinco anos, entre o último ano do segundo mandato do presidente Lula e os quatro anos do primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff.

“Concluir a Norte-Sul é um feito fantástico da engenharia ferroviária brasileira. Temos que dar parabéns aos engenheiros do quadro da Valec, que conseguiram terminar esse processo, mesmo com investimentos que foram altos só num período e depois foram pequenos”, disse Jorge Bastos, que desde fevereiro deste ano preside a Infra S.A. Os avanços lentos da construção da ferrovia na década passada fizeram o governo da presidente Dilma Rousseff iniciar um segundo processo de subconcessão, agora do trecho após Porto Nacional (TO) que faltava para chegar até São Paulo. O projeto ganhou tração no governo Michel Temer, dentro do qual teve o edital lançado, mas a data da licitação foi marcada para março de 2019, já no início do governo Jair Bolsonaro.

O leilão desse novo trecho também foi marcado por polêmicas, visto que, novamente, os problemas com o direito de passagem seguiam (informações mais detalhadas sobre o tema estão nas páginas 34 a 40 desta reportagem de 2022 sobre a gestão do ex-ministro Tarcísio de Freitas no Ministério da Infraestrutura).

Segundo Bernardo, que na época assessorava a RZD, estatal russa de ferrovias, a regra do direito de passagem para garantir o transporte de carga pelas duas ferrovias de outras concessionárias que acessam os portos (a Malha Paulista, da Rumo, e a EFC, da Vale) eram frágeis e fizeram o grupo desistir. O direito de passagem dos trens de uma ferrovia pela outra é garantido legalmente, mas depende de contratos entre as duas concessionárias. As concessionárias que operam no país dizem que o uso desse direito é comum entre elas. O que Bernardo Figueiredo, que também foi diretor-geral da agência reguladora do setor, diz é que, para novos entrantes, não há segurança de que esses contratos terão janelas de trânsito e preços adequados, o que torna os investimentos inseguros.

O resultado do leilão de 2019 foi que só a Rumo e a VLI, que tem a Vale como principal acionista, disputaram. E a Rumo venceu com uma oferta elevada: R$ 2,7 bilhões em outorga, quase o dobro do mínimo exigido. Com a vitória, a Rumo iniciou o processo para finalmente terminar a construção da ferrovia com um investimento de R$ 4 bilhões (incluindo novos trens). Mas encontrou o que Guilherme Penin chama de um “ativo heterogêneo”, com “trechos em bom estado, realizados com boa técnica, materiais de primeira; e trechos simplesmente inexistentes, e também trechos nos mais diversos [graus] de avanço, alguns com materiais ruins, já um pouco depreciados”.

“Até hoje a gente acha problemas”, contou.

Os dois maiores desafios, que eram as construções de duas grandes pontes, a sobre o Rio Grande (fronteira Minas Gerais e São Paulo) e a sobre o Rio Paranaíba (Minas Gerais e Goiás), foram concluídos ano passado. Faltava o trecho final entre Palmeiras de Goiás e Goianira, que até março tinha 70% de avanço. Segundo Penin, foi atacado com “veemência” nos últimos três meses para ser concluído, deixando 100% operacional o que passou a ser chamado de Malha Central da Ferrovia Norte-Sul. O prazo inicial para a entrega da ferrovia concluída teria terminado em 2022 pelo contrato assinado em 2019. Por isso, havia a expectativa de que ela estivesse operacional ainda no governo Bolsonaro, o que, segundo Penin “, não ocorreu por causa da pandemia. Empresas contratadas não conseguiram entregar o contratado no prazo. O Congresso aprovou uma lei que permitiu a postergação em um ano de todas as obras ferroviárias previstas em concessões, o que faz com que não haja oficialmente atrasos na entrega.

“Estamos rigorosamente no prazo”, disse o diretor.

Guilherme Penin lembrou que a Rumo já tem um terminal de contêineres em Imperatriz (MA), a ponta norte da ferrovia, para que seja implementada uma logística entre o norte e o sul de transporte com esse tipo de equipamento por meio da Brado, uma subsidiária para transporte de contêiner. A intenção é fazer a logística de contêineres da Zona Franca de Manaus (AM) por trem. “O propósito é fazer a conexão contêiner entre São Paulo e Maranhão, passando por todas as regiões. Essa possibilidade é concreta. É a mesma ferrovia e isso só abre mais possibilidades de desenvolvimento econômico do país”, disse Penin.

Ferrovia que leva a Alcântara – Bento Lima, o ex-diretor da Valec, atualmente trabalha em um projeto que tem a Ferrovia Norte-Sul como fundamental, que é uma nova ferrovia privada no Maranhão, que leva até o TUP Alcântara (MA), um porto com calado profundo (25 metros) capaz de receber os maiores navios do mundo e que tem projeção para operar no início da próxima década. De acordo com os cálculos da empresa Grão-Pará Multimodal, que nesse projeto se associou à DB, a estatal alemã de ferrovias, e à brasileira Sysfer, o uso desses grandes navios poderia levar a uma redução de US$ 15 a tonelada na logística de transporte de grãos do Centro-Oeste do Brasil para a Ásia. Para a mercadoria chegar até o TUP, segundo Bento, a Norte-Sul será essencial.

“É a Ferrovia Norte-Sul que vai alimentar esse projeto”, disse Bento Lima.

 

Fonte:
Blog O Informante

Com Dimmi Amora, da Agência iNfra