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Entrevista: JOSÉ POLICARPO DA COSTA NET0

Professor da Universidade Federal do Maranhão e uma das maiores autoridades em água no Estado.

“A questão não se resume a ter ou não ter água. O grande pânico da humanidade se deve a incrível velocidade com que os ecossistemas aquáticos estão se degradando. São Luís é um exemplo. Há 30 anos se banhava no rio anil, no bacanga e no paciência, de onde saía, inclusive, todo o abastecimento de água da capital. Hoje os três foram transformados em esgotodutos”

Por Carlos Andrade, Jornal da Soamar, agosto de 2002

Conversar com o professor José Policarpo Costa Neto, é, literalmente, chover no molhado. É Doutor em Engenharia pelo programa de pós-graduação em hidráulica e saneamento da USP, na Escola de Engenharia de São Carlos, com especialização e linha de pesquisa na área de limnologia. Sua tese: (Bases limnológicas para o manejo de tanques de cultivo de peixe”. Professor do quadro da Universidade Federal do Maranhão, ele é um, entre os diversos especialistas do Departamento de Hidrobiologia, a se preocupar com questões ligadas ao meio ambiente, ecologia, poluição e água. Água, aliás, é a sua praia. Ou melhor, sua especialidade. Nesse ambiente líquido por natureza, ele navega com a desenvoltura de quem é a maior autoridade estadual no assunto. Maranhense de Pinheiro, nasceu às margens do rio Pericumâ. Estudou no Colégio Pinheirense, depois, já em São Luís, no início dos anos 60, no Colégio Marista. Aprovado no concurso da Sudene arrumou as malas e foi para Fortaleza, com Bolsa de Estudo paga pelo Governo, para se formar em Agronomia.

O ano era 1967 e a faculdade, a Escola de Agronomia da Universidade Federal do Ceará, hoje conhecida como Centro de Ciências Agrárias. De volta ao Maranhão, logo ingressou no quadro técnico do Banco de Desenvolvimento do Estado do Maranhão, o já extinto BDM, onde ficou por exatos 25 anos. Apesar do Mestrado e da Graduação em Agronomia Rural, o professor Policarpo é, antes de tudo, um apaixonado pela sua baixada. Criado sob a magia das águas do Rio Pericumã, foi, como técnico do BDM – uma das mais respeitadas instituições de fomento do Estado – que ele cruzou o Maranhão de ponta a ponta e viu despertar sua verdadeira vocação. Atento a tudo em sua volta como um verdadeiro missionário, logo se deixou seduzir pelo fascínio das águas que iam e vinham num ciclo natural de inverno e verão.

Ora criando lagos cheios e fartos. Ora criando campos verdes e fascinantes iguais aqueles, cujas paisagens, o ajudaram a construir seus sonhos de criança. Alguns anos depois o menino virou Doutor. Peitou dragas, enfrentou poderosos, e, pelo menos no seu Pericumã, manteve o curso natural das coisas, ou melhor, das águas. Nessa entrevista ela fala da importância de se preservar os mananciais, critica as formas de políticas ambientais existentes, e faz um alerta: a fobia da água existe e é um motivo sério de preocupação. “Por causa da falta de água e saneamento morre uma criança a cada 10 segundos no mundo. Além disso, 80% das doenças e 30% das mortes ocorrem pelos mesmos motivos. Quer dizer, esse tipo de crime – e de criminosos – é responsável pelo óbito mundial de mais de 10 milhões de pessoas a cada ano”.

JS – Como a água entrou em seu currículo?
Prof. POLlCARPO – Como pinheirense, quanto mais eu conhecia o Maranhão, mais me chamava atenção à questão da água, tendo sempre como referência o rio Pericumã. Pois bem, o Governo do Estado resolveu fazer uma comporta, uma eclusa nesse rio e para isso foi autorizada uma dragagem do leito, que, inexplicavelmente, foi iniciada sem nenhum embasamento cientifico que medisse suas conseqüências – naquela época ainda não se falava em estudos de impacto ambienta!. O mais grave: a dragagem seria feita em dois sentidos. Uma draga descendo e outra subindo o rio, com o objetivo de alargar seis metros em cada margem e outros tantos de profundidade. Aquilo me pareceu absurdo, pois eu sabia que alguma coisa estava errada. Uma obra dessa não poderia ser trabalho apenas de engenheiros. Naquele momento eu me despertei para a necessidade de estudar cientificamente a água.

JS – Mas a dragagem seguiu seu curso. Ou não?
Prof. POLlCARPO – Como professor e técnico do BDM e ainda como filho de Pinheiro, procurei imediatamente o DNOS e conversei com o então Diretor Técnico, Dr. Felício Santiago. Como ele não tinha respostas aos meus questionamento, sugeriu que fossemos no local da obra e ver a veracidade das minhas suspeitas. Nos meus argumentos, eu explicava que, mesmo não tendo conhecimento cientifico suficiente sobre o assunto, eu tinha certeza que alguma coisa estava errada, pois ao remover a lama, eles estavam acabando com um ecosistema natural responsável pela vida de centenas de milhares de espécies de peixes que daqueles microorganismos se alimentavam e mantinham vivo o ciclo da vida no Pericumã. Resultado: em vez de duas dragas, eles utilizaram apenas uma, subindo o rio, da comporta até o local conhecido como Alto do Pericumã.

JS – Foi então que veio o doutorado?
POLlCARPO – Depois dessa discussão com o pessoal do DNOS, tive outra. Desta vez por causa do búfalo, um animal que foi introduzido como a salvação da economia da Baixada e se tornou, em pouquíssimo tempo, uma de suas piores pragas. Pois bem, por causa dessas questões, fui ao professor, Warwick Ker, então Chefe do Departamento de Biologia da UFMA, e lhe disse o seguinte: estou de malas prontas para ir fazer o meu doutorado em economia rural na Unicamp. Mas tomei uma decisão. Se eu tiver de gastar algum quantum da minha energia numa especialização desse nível, irei fazer naquilo que está me angustiando. Vou fazer em ecologia em água doce. Me diga onde tem o melhor curso nessa área. Dr. Warwick me deu total apoio e indicou a Universidade Federal de São Carlos, em São Paulo, uma referência em doutorado na área de limnologia. Na mesma hora ligou para o professor José Galizia Tunísio e assim começou a fase molhada do meu currículo.

JS – Muito bem, o Senhor é Doutor exatamente em quê?
Prof. POLICARPO – Iniciei o Doutorado na Federal de São Carlos e depois acompanhei o Professor Tunísio que se transferiu para a á USP de São Carlos, onde implantou o programa de Pós-Graduação em hidráulica e saneamento. Sou Doutor em engenharia pelo programa de pós-graduação em hidráulica e saneamento da USP, da Escola de Engenharia de São Carlos, com especialização e linha de pesquisa na área de limnologia. A minha tese de doutorado foi defendida tendo como tema às “Bases limnológicas para o manejo de tanques de cultivo de peixe”.

JS – Para um especialista a definição da água é simples como H20?
Prof. POLICARPO – Não. É muito mais ampla, pois eu a vejo como uma substância inerente à vida. Eu costumo dizer aos meus alunos que nós, assim como utilizamos o ar, consumimos água 24 horas do dia. Até mesmo quando dormimos o nosso metabolismo está processando água. Tanto é verdade que ao acordar temos uma inadiável vontade de urinar. Ou seja: é o organismo querendo eliminar a água processada durante o sono.

JS – Para o Senhor, a referência mais antiga da água é a do Gênesis bíblico, ou não?
Prof. POLICARPO – Eu acho que é o registro bíblico sim. Não acredito que a ciência tenha encontrado uma explicação anterior. Mesmo porque a referência do Gênesis não determina data. Independente de registros antigos, o que a ciência tem feito é buscar uma explicação convincente de como dois átomos de hidrogênio se juntaram a um de oxigênio resultando nessa molécula fantástica da qual se obtém a água.

JS – Água fora da nossa galáxia, é possível?
Prof. POLICARPO – Eu acho como uma coisa natural. Não sei como contaram, mas existem estimativas de 4,5 bilhões de galáxias. Na minha cabeça não cabe a tese de que nesse universo todo, onde a Via Láctea é uma entre milhões de outras, apenas a terra seria beneficiada com esse líquido maravilhoso chamado água. É muita pretensão imaginar que apenas o nosso planeta tem vida. Pode ser único em termos de ser humano, mas a probabilidade de outras formas de vida existirem é, a meu ver, bastante viável.

JS – Num planeta onde dois terços é água, por quê alguns países, como o Afeganistão por exemplo, são tão secos?
Prof POLICARPO – Isto ocorre por causa de uma péssima distribuição ou uma distribuição desigual. Veja o exemplo do Brasil. Nós temos 17% da água do mundo e ainda morre criança de sede no Nordeste, apesar da proximidade com a Região Amazônica, onde o produto existe de forma abundante. Independente da péssima distribuição, o Nordeste é servido por um aqüífero subterrâneo de grande potencial e inexplicavelmente nunca explorado.

JS – Existe tecnologia para esse tipo de exploração?
Prof POLICARPO – Existe, funciona e só não se resolve o problema da seca neste país por absoluta falta de vontade política. Existem alguns estudos que comprovam essa tese e o mais respeitado deles pertence ao professor Batista Reis, da USP de São Paulo, uma autoridade nacional no assunto. E claro que existe alguma injustiças da natureza com relação a essa ou aquela região. Mas por outro lado, quando chove menos num local, reduzindo a água da superfície, pode apostar que ela existe em grande quantidade em lençóis subterrâneos.

JS – Seria esse o diagnóstico do Nordeste?

Prof POLICARPO – Também, mas existe outro. O Nordeste é pobre porque tem escassez não de água, mas de políticos de vergonha. Homens públicos comprometidos com os problemas das pessoas e que busquem soluções reais e definitivas. Eu não tenho esses dados, mas dizem que bastaria que o Governo aplicasse 10% do montante de recursos já consumido pela industria da seca para que o Nordeste fosse outro. Bastava mandar perfurar poços profundos – entre 800 e 1000 metros – e depois tratasse essa água e a entregasse a população. Nunca mais essa região teria sede.

JS – Pânico de ficar sem água. Essa fobia tem sentido?
Prof. POLICARPO – Tem, e muito. E os números dos recursos hídricos do planeta mostram isso de forma clara. Veja bem: 71% da superfície da terra é coberta de água. Desse total, 97,5% estão nos oceanos. Água salgada. Apenas 2,5% da água da terra é doce. Agora preste atenção: desse total de 2,5% considerado de água doce, 69 % estão sob a forma de gelo, congelada nas calotas polares e nas geleiras como os Alpes, Andes e outras cordilheiras; Dos 31 % restantes, 30% representam água de sub-solo e. O que sobra é apenas 1% – de toda água doce – nos rios, lagos e outros ambientes superficiais menores. Tirando as impurezas e aquelas reconhecidamente impróprias para o consumo, quer saber qual o percentual disponível que temos para abastecer a sede do mundo? apenas 0,6%. A fobia tem ou não tem sentido?

JS – Pelos números, então, a coisa é mais grave que se imagina…
Prof. POLICARPO – É, e pode ficar pior. Tem sido rápida a degradação da maioria dos nossos ecossistemas aquáticos, principalmente pelo aumento do consumo por causa da expansão urbana, comprometimento da qualidade por causa da poluição e contaminação dos mananciais, perdas associadas à irrigação, evaporação e salinização. Paradoxalmente, a sociedade moderna vive numa crescente dependência dos ecos sistemas aquáticos e, ao mesmo tempo, contribui diuturnamente para sua degradação com lançamentos de efluentes domésticos e industriais sem qualquer tipo de tratamento. Parece não preocupar ninguém o fato desses mananciais – que representam o 0,6%, lembra – servirem de escoadouros para águas residuais contaminadas por pesticidas e fertilizantes utilizados na agricultura e na pecuária e até substâncias cancerígenas oriundas de lançamentos de hospitais e clínicas de saúde. Quer um exemplo: um paciente internado com doença grave, contaminosa, não pode usar o mesmo sanitário do seu acompanhante. Mas a rede de esgoto do hospital é uma só e qualquer que seja o banheiro, o destino dos dejetos será sempre o mesmo. Ou seja: um manancial comum a todos nós.

JS – Essa preocupação com a qualidade e quantidade da água é nova?
Prof. POLICARPO – Não, embora tenha se acentuada com mais intensidade nos últimos anos. A luz vermelha só acendeu no início dos anos 90, quando foi diagnosticado que mais de 25% da população mundial não dispunham de meios para suprir as necessidades básicas de comer o suficiente e dispor de água limpa e de condições de higiene e saneamento.

JS – Um degelo nos trópicos não supriria uma eventual falta de água no mundo?
Prof. POLICARPO – A questão não se restringe a ter ou não ter água. O grande pânico da humanidade se deve a incrível velocidade com que os ecossistemas aquáticos estão se degradando. São Luís é um exemplo. Há 30 anos se banhava no rio Anil, no Bacanga e no Paciência, de onde, inclusive, saia o abastecimento de água potável para as nossas torneiras. Hoje todos três são esgotodutos. Mas respondendo a sua pergunta, um degelo nas calotas, dependendo do tamanho, pode resultar em verdadeiras catástrofes, uma vez que existe um nível para os oceanos e uma elevação de centímetros pode representar o fim de cidades costeiras em todos os continentes. Mas a idéia de tirar água potável do gelo não é absurda. A Arábia Saudita e o Kuwait já se utilizam desse recurso. E fazem isso justamente porque enquanto para nós a escassez parece ser uma realidade distante, para eles o problema existe e já é bem real.

JS – E a dessalinização?
Prof.POLICARPO – É uma alternativa, mas de custo muito alto para países pobres como o Brasil, por exemplo.

JS – Qual o diagnóstico da água de Ilha de São Luís?
Prof. POLICARPO – Está doente. Só temos a reserva do Batatã e a Bacia do Paciência, mesmo assim bastante comprometida, a exemplo do Bacanga e do Rio Anil. Nos resta um grande lençol de água subterrâneo. Hoje, 60 a 65% da água que abastece a capital vem do Italuis. O resto vem dos poços e estes, infelizmente, por falta de estudos científicos em suas execuções, já estão sofrendo processos de salinização. Se não bastasse, segundo dados levantados pelos geólogos que estudam o problema, 60% da água potável produzida em nossa capital é desperdiçada.

JS – O Senhor tem números do desperdício nacional?
Prof. POLICARPO – Está entre 20 a 22%. Quer dizer, nós, em São Luís, jogamos fora a água de boa qualidade três vezes mais que o resto do país. Outro problema: a quantidade de esgoto in natura jogado nos rios, assim como toneladas e mais toneladas de lixo, estão comprometendo os lençóis subterrâneos. Resumindo: nós que já estamos sem água de qualidade na superfície, corremos o risco de ficar, também, sem água de boa qualidade no sub-sólo.

JS – Uma segunda adutora de Italuis já está sendo construída. É uma saída?
Prof. POLICARPO – Não é. Mais uma vez estão metendo os pés pelas mãos, pois não estão pensando na permanência dos estuários. Na minha opinião irão comprometer ainda mais o rio Itapecuru e até o Mearim. E não precisava. Bastar combater o desperdício.

JS – Não é contraditório imaginar que as pessoas que gerenciam essas políticas de água e saneamento da nossa capital não saibam disso?

Prof. POLICARPO – O pior que sabem. Antes ainda podiam argumentar que pouco se sabia sobre o assunto. Hoje já não se admite esse tipo de desculpa. Quem permite que se jogue esgoto nesses rios, quem permite que se devaste as matas ciliares, quem permite que se degrade o meio ambiente, está cometendo um crime de lesa humanidade. Por causa da falta de água e saneamento morre uma criança a cada dez segundos no mundo. Além disso, 80% das doenças e 30% das mortes ocorrem pelos mesmos motivos. Esse tipo de crime – e de criminosos – é responsável pelo óbito de mais de dez milhões de pessoas nos cinco continentes a cada ano.

JS – Professor, se não tivesse Italuis como estaríamos nós?
Prof. POLICARPO – Muito bem. Bastava ter sido implantado uma política de preservação dos nossos mananciais. Feito isso, não haveria nenhuma necessidade de ir buscar água de tão longe para alimentar as nossas necessidades.

JS – Mas a realidade é outra. Rios como ltapecuru, Munin, Mearim, Das Bicas e muitos outros estão à beira da morte. É possível reverter tais processos de extinção?
Prof. POLICARPO – A primeira coisa é fazer um grande trabalho de mobilização social, passando pela preservação ambiental e com o comprometimento das instituições, dos Governos e principalmente das mulheres. Nenhuma política de preservação da água terá sucesso se não houver a colaboração efetiva da mulher. Essa conclusão existe desde 1982, saída de uma convenção mundial realizada em Genebra. É a mulher que gerencia toda a política de água da casa e é ela, também, que sofre primeiro com a sua falta. Por isso, qualquer iniciativa de preservação dos mananciais aquáticos que desejar algum tipo de sucesso, não poderá nunca prescindir dessa fundamental e importante colaboração.