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Trem de Passageiros da Companhia Vale do Rio Doce: um comboio de muitas histórias de vida

Por Carlos Andrade, da Redação

  Cinco horas da manhã de uma segunda-feira especial na vida de Dona Maria José. Neste dia, um qualquer da segunda quinzena do mês de março, como tem feito regularmente nos últimos dez anos, visitará a filha e os netos que moram na cidade maranhense de Açailândia. Vai, finalmente, vencer a segunda etapa de uma viagem que começou de ônibus em sua cidade natal Bacabal, a 290 kms de São Luís. Depois de uma parada estratégica na capital maranhense irá, como centenas de outras pessoas, embarcar no Trem de Passageiros da Companhia Vale do Rio Doce.

Ao chegar na Estação Ferroviária do Anjo da Guarda por volta das 7h15m, descobriu que, como ela, uma quase multidão tinha acordado naquela manhã com igual propósito: embarcar na primeira das 15 paradas existentes de um longo percurso até a parada final, a cidade de Parauapebas, no Pará, a exatos 861 km do início da viagem.

Porém, naquela manhã, a felicidade dela e de todas as outras pessoas não estaria completa se antes, na mesma madrugada, duas dezenas de pessoas de diferentes empresas não tivessem se dirigido ao mesmo destino para garantir o conforto, o funcionamento e abastecimento estratégico do comboio.

Um a um. Maquinista, técnico de eletro-eletrônica do canal futura, chefe do trem, coordenador, comissários, apoio e responsáveis pela lanchonete assumem seus postos e, só então, Dona Maria José, 65 anos, pode viajar sossegada. Pela previsão dos controladores de viagem, vai ver a filha depois da cinco da tarde. Antes, como seu destino é a cidade guzeira de Açailândia, ainda no Maranhão, precisa vencer 517 km de ferrovia e cruzar 10 municípios.

Oito horas da manhã. Depois de engolir em seus vagões aquele povaréu todo, uma prosaica ordem do Chefe do Trem faz acionar os potentes motores da locomotiva e, lentamente, a inércia é vencida e tudo se inicia. Para Daniel Nakahara de Oliveira, a quem cabe, no primeiro trecho da viagem, dar a ordem de todas as partidas, só o percurso não muda nunca. “A cada viagem as situações e as pessoas garantem a diferença entre um trecho e outro”, diz, sem nenhuma preocupação em disfarçar o orgulho pelo cargo que exerce.

E muitas são as histórias contadas e ouvidas durante as mais de 16 horas que duram uma viagem completa de São Luís, no Maranhão, a Parauapebas, no Pará. Apesar da torre de babel de sotaques, todos se entendem: cariocas, capixabas, cearenses, baianos, paraenses, piauienses, paulistas e maranhenses. Isso para não falar de franceses, italianos, americanos, japoneses, alemães…

Os maranhenses, no entanto, merecem um capítulo especial. Assim como a bacabalense Maria José, o comboio segue viagem levando representantes de todos os municípios. A grande maioria de São Luís, Santa Inês, Açailândia e Imperatriz. É um formigar de gente indo e vindo nos corredores dos vagões, na lanchonete e conversando ou dormindo nas poltronas. E, se é verdade que se conversa bastante no Trem de Passageiros, também é verdade que se dorme mais ainda. Os opostos estão ali. Enquanto os mais velhos se acomodam e se encolhem, as crianças deixam liberar todas as energias até o desmaio final sob forma de sono – o que nem sempre acontece – no colo de algum adulto.

A primeira parada é em Vitória do Mearim, seguida de Arari, Santa Inês, Alto Alegre do Pindaré, Mineirinho, Auzilândia, Altamira, Presa de Porco, Nova Vida, Açailândia, São Pedro da Água Branca, Marabá, Itainópolis e Parauapebas. Em cada uma delas, as 88 poltronas dos vagões são preenchidas com histórias de gente, em alguns casos, até de animais. “No começo, quando comecei usar o trem para ir pra Marabá era um inferno. Até porco eles tentavam embarcar”, relembra seu Antônio, 65 anos, morador de Presa de Porco, com a autoridade que usa esse tipo de transporte desde os primeiros anos de sua operação. Hoje, como explica Daniel Nakahara, não transportamos mais esse tipo de animais. Exceção para cães e gatos, “desde que devidamente acomodados em caixas próprias e despachados como carga no vagão destinado aos volumes”, afirma.

Daniel destaca ainda algumas conquistas importantes do sistema, como a segurança – nunca houve um assalto a bordo – e a relação de confiança que existe entre as equipes que comandam o trem e os passageiros usuários. “A gente conversa muito com as pessoas e mesmo aquelas rodas que se formam no cais – área de vista livre entre um vagão e outro – costumam discutir esse tipo de relação de puro companheirismo que acabamos experimentando durante as muitas horas que passamos juntos”, explica o jovem Chefe de Trem.

Como uma viagem completa de ida é feita em períodos superior a 16 horas, as equipes que trabalham são obrigadas a um calendário de revezamento. São dois chefes de trem e duas equipes de apoio. A troca acontece no Km 384, no município de Nova Vida. Só no caso do maquinista a rotina é outra. Um leva o trem de São Luís até Nova Vida; outro até Marabá, Km 738; e um terceiro faz a última perna na viagem até a cidade de Parauapebas, no estado do Pará, a 861 km do ponto de partida.

Para um viajante de espaços tão longos – a primeira foi há mais de dez anos – como o repórter, duas novidades chamaram a atenção: a presença do vagão chamado de salão e a ausência do vagão enfermaria. Nos dois casos as explicações estão na ponta da língua: O vagão salão foi criado para nos permitir acomodar melhor passageiros portadores de deficiências e proporcionar maior flexibilidade de embarque nos pontos de parada – onde não existe estação ferroviária. Com o aumento do número de trens na linha principal – 24 em média – o tempo de parada do de Passageiro deve ser cumprido rigorosamente. “Com o carro salão, todos embarcam, o trem segue seu curso e os comissários de forma tranquila, podem emitir os bilhetes de passagem de acordo com os trechos de destino de cada um”, explica Daniel Nakarara. (foto em destaque).

No caso do carro ambulatório, ou vagão enfermaria, a sua retirada tem uma explicação no mínimo curiosa. Segundo a Chefe de Trem Dauglas – a única mulher a exercer essa função em todo sistema de passageiros da CVRD – houve um desvio de função que gerou problemas sérios durante as viagens. “As pessoas, conscientes de que havia um serviço médico a bordo, e, de acordo com a patologia, recebiam até remédios de graça, começaram a pegar o trem entre um trecho e outro apenas para se consultarem. Tivemos casos de doentes graves que eram embarcados por seus familiares com o único objetivo de conseguir um atendimento médico”, afirma ela.

No cargo há quatro anos, Dauglas – o feminino de Douglas, explica, para memorizar o nome – gosta do que faz e já viveu muitas histórias nessa máquina de levar e trazer gente. Ela costuma dizer que o trem passa mas deixa sempre uma história de vida nas comunidades que atravessa nos seis dias da semana que sobe e desce os 861 km da estrada de ferro Carajás. “Uma vez um passageiro veio reclamar exaltado que, naquela determinada parada, eu, por ser mulher, investida nessa condição de Chefe do Trem, havia estacionado o comboio mais afastado da rampa de descida do que na estação anterior”. Perguntada sobre a resposta para uma interpelação tão sem propósito, ela foi lacônica: “pedir desculpa e prometi que da próxima vez teria mais cuidado”.

Essa é apenas uma das muitas histórias que atropelam a rotina de uma viagem onde até as curvas são do conhecimento de todos. No início, quando o Trem de Passageiros entrou em operação, em 1986, houve de tudo a bordo, até mesmo nascimentos de bebês. Hoje, sem os profissionais de saúde retirados juntamente com o vagão enfermaria, o acesso de grávidas só é permitido até o sétimo ou oitavo mês. Fora disso, para o embarque ser autorizado, é preciso uma declaração de um médico garantindo (?) que a passageira/parturiente não tem a menor possibilidade de entrar em trabalho de parto durante o percurso.

E assim, de parada em parada, o Trem de Passageiros da Companhia Vale do Rio Doce segue seu curso. Já foi mais pontual. Antes, quando o número de trens de minério era menor, havia uma máxima que as comunidades acertavam o relógio pela passagem do trem. A logística de distribuir tantos vagões e tantas locomotivas numa única linha em sentidos opostos explica as incomodas espera em pátios e estações ao longo do percurso. Mesmo assim, os números são impressionantes. Em 2007 transportou 352 mil e 89  pessoas, uma média de 1.300 a cada 24 horas.

Se o Trem de Passageiros da Vale oferece pouco? Se não tem merecido por parte da empresa o mesmo tratamento dos seus primos ricos? Se não é visto pela mineradora com a real dimensão social que exercer nas comunidades onde cruza? Se minério de ferro dá mais lucro que gente? Isso pouco importa. E não cabe, nessa reportagem, esse tipo de questionamento.

O importante, é que, sem ele, a história da ferrovia de Carajás seria outra. Nada de estações, nada de paradas, nada de comunidades. Nada, absolutamente nada de desenvolvimento ou de progresso ou de nichos de gente que antes não passavam de núcleos e/ou povoados e hoje são chamados de cidades.

Para a maioria das pessoas, sobretudo aquela que lota a classe econômica – existe a também a classe executiva, com ar condicionado bem mais confortável que esta – o trem trouxe mobilidade, conhecimentos e paisagens muito além de suas próprias janelas. O Canal Futura – exibido em monitores em todos os vagões – com seus programas educativos como os Diários de Bordo é um feliz exemplo dessa expansão de cultura e de saber. “Moço, se eu lhe disser que tenho aprendido nesse trem coisas que nunca imaginei sequer que existia, o senhor não vai acreditar”, diz, incrédulo e feliz João Damasceno, 54 anos, nascido no município maranhense de Rosário, acomodado entre cobertores enquanto espera chegar a sua estação de destino, São Pedro da Água Branca, no Km 650.

Negar a importância do trem de passageiros da Vale em termos de ganho social para uma faixa de miseráveis que se estende por mais de 800 km antes esquecida do mundo, é negar a importância que o trem de minério de ferro – o primo rico do sistema Carajás – tem para a balança comercial em termos de exportação. E melhor de tudo é que o trem não chegou sozinho. Com ele vieram outros projetos sociais de peso, como o Vale Alfabetizar, por exemplo. Só no Maranhão, em 2007, o projeto matriculou 10 mil alunos que depois de um ano de aulas foram considerados alfabetizados.

O Vale Alfabetizar é mantido pela Fundação Vale do Rio Doce e tem núcleos fixos nos municípios de Açailândia, Alto Alegre do Pindaré, Rosário e São Pedro da Água Branca. No Brasil, incluindo os estados do Pará, Espírito Santos e Minas Gerais, o programa já alfabetizou mais de 100 mil alunos.

Não é difícil se encontrar no Trem de Passageiro quem não conheça alguma coisa do programa de alfabetização da Fundação Vale do Rio Doce. “O projeto é mais uma ação social voltada para as pessoas que moram nos municípios onde a Vale está presente e visa erradicar – no caso do Maranhão – o analfabetismo em localidades cortadas pela ferrovia de Carajás”, explica a jornalista Vanessa Tavares, chefe da Assessoria de Imprensa em São Luís. Na definição macro da empresa, o Vale Alfabetizar contribui para reduzir o analfabetismo em nosso país e atende alunos com idade entre 19 e 90 anos.

Como bem disse uma jovem senhora que falava pelos cotovelos durante a viagem, programas desenvolvidos pela CVRD como o Vale Alfabetizar, a TV a bordo com suas transmissões educativas representam janelas de um mundo que boa parte daquelas pessoas jamais teria oportunidade de enxergar não fosse o trem. E as ações não se limitam apenas a bordo. Enquanto esperam, nas estações principais, como Santa Inês, Açailândia e Marabá, uma equipe de monitores ajuda os passageiros passar o tempo. Dona Valdimira Castro, por exemplo, mesmo ainda não sabendo ler direito – ou talvez por isso – ficou encantada ao receber o livreto Passatrem. Ali, enquanto esperava na estação de Açailândia para iniciar sua viagem de volta a São Luis, pode, com a ajuda de uma voluntária, pela primeira vez em sua vida, fazer uma simples palavras-cruzadas.

“Eu consegui…Eu consegui”, dizia ela, aos 49 anos, como se houvesse ganho uma medalha olímpica.

E Dona Valdimira não está sozinha nessa felicidade aparentemente simples. Como ela, uma outra personagem entra em cena nessa busca quase impossível de saber entender as letras. Maria do Socorro, de 54 anos, perdeu os movimentos do lado direito do seu corpo, em virtude de uma doença. A paralisia a fez conviver com a dificuldade de locomover-se, e ainda de ler e escrever. Incentivada pelos educadores do Vale Alfabetizar e com o apoio dos parentes, marido, dos sete filhos e vizinhos, a aluna exemplar voltou a estudar. Com muita força de vontade e a necessária ajuda reaprendeu a escrever com mão esquerda e voltou a ter gosto pela leitura.

É o Trem de Passageiros da Vale do Rio Doce de muitas histórias e de muitas variáveis sociais em benefício de um estado pobre e de analfabetos como o Maranhão.

Sem ele, a Estrada de Ferro Carajás seria, apenas, uma distância sem alma.

Data da Notí£©a: 25/03/2008